14 março 2005

A Gente Se Acostuma (Marina Colassanti)

Eu sei que a gente se acostuma,

Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a
não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque
não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir
de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo
se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida
que se acostuma esquece o sol,esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque
está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus
porque está cansado. A deitar cedo e a dormir pesado sem ter
vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler
sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que
haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita
não acreditar nas negociações de paz.

E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de
guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a
esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se
acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita.

E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar
menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar
mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir
as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir
a comerciais.

A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado,
conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata
dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro
tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às
besteiras das músicas, às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios.
E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do
pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses
pequenas, tentando não perceber. Vai afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio,
a gente se senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no
resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola
pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito
o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque
tem sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar
a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para
esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente
se acostuma para poupar a vida.

Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de
si mesma.

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